
Foto: Lucas Pena. Manifestação de mulheres contra Bolsonaro no Largo da Batata, em São Paulo.
Por Ingrid Leão
As mulheres, em sua real pluralidade, foram às ruas de todas as regiões do Brasil no último dia 29 de setembro, com um grito: Ele Não! A mobilização impressionou pelo tamanho e foi articulada em grupos nas redes sociais, com mais de 3 milhões e 500 integrantes no grupo secreto mais numeroso. São mulheres interessadas em política sobre si e para todos.
A expressão Ele Não e suas demais variações representam a negativa do projeto de governo oferecido pelo candidato do Partido Social Liberal (PSL) na corrida presidencial, que, por sinal, lidera as pesquisas de opinião pública tanto em intenção de votos como em rejeição. O desenho de uma sociedade que reverbera tal projeto passou a demandar uma postura de alerta sobre a sobrevivência de si mesmo, principal consequência de uma democracia enfraquecida.
O conjunto de falas e gestos do candidato do PSL e seu vice-presidenciável passaram a ser consideradas publicamente como um projeto antidireitos das mulheres, com base em conceitos que traduzem valores de preconceito de gênero, raça, orientação sexual, e classe, até concepções que são lidas como uma proposta de retiradas de direitos e promoção da discriminação deliberada, com o objetivo de ganhar o selo do sexismo e da misoginia por parte de seus eleitores, de maioria do sexo masculino. Assim, o grito “ele não” cresceu na medida em que as eleitoras se enxergavam reiteradamente como subcidadãs nas propostas e discursos de campanha.
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A ênfase ao perfil eleitoral feminino é alimentada também pelos números do Tribunal Superior Eleitoral e das pesquisas de opinião que permitem uma observação por sexo, escolaridade e local de residência. São 147.302.357 pessoas habilitadas a votar em 2018, das quais 77.337.918 são eleitoras (52,5%) e 69.901.035 eleitores (47,5%). A estatística eleitoral acompanha os dados demográficos do país, que também indicam uma população de 51,5% de mulheres e 48,5% de homens.
Sem avançar aqui sobre as declarações da candidatura do PSL, publicamente conhecidas, sobre o direito das mulheres à licença maternidade ou o direito de não ser estuprada, fato é que as mulheres se atentaram para dois aspectos que se apresentam como “afirmativos” dos direitos das mulheres no plano de governo para a presidir o Brasil. O primeiro é a visão sobre estupro e armamento e o segundo uma campanha assumidamente contrária a igualdade de gênero sob a denominação enganosa de “ideologia de gênero”, supostamente para “a proteção de nossas crianças e as famílias brasileiras”.
Os dois aspectos do projeto para as mulheres se articulam com a agenda da segurança pública e a agenda da educação, grandes temas para qualquer programa de governo em todos os níveis de campanhas eleitorais no país. Ao invés de uma política de enfrentamento da violência contra à mulher que já buscasse melhorar os serviços existentes e propor novos que fortaleçam as conquistas das mulheres quanto a essa antiga preocupação, as mulheres ouviram outro discurso posto no plano intitulado “o caminho para a prosperidade”: a legítima defesa, o uso de armas com a reformulação do Estatuto do Desarmamento, enrijecimento das regras para prisão e, especificamente para o estupro, a castração química.
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O programa, que cita a palavra mulher uma vez e a palavra família dezesseis vezes, já se posiciona em “expurgar a ideologia de Paulo Freire” e a eliminação da “doutrinação precoce”. No discurso público, essas alíneas do plano de governo são traduzidas em combater a “ideologia de gênero”, algo que se “mantrificou” sem ninguém explicar do que se trata, apenas a exibir hipotéticas situações que aterrorizam pais e mães de um lado e criminalizam a atuação profissional de professores de outro, enquanto outras tantas pessoas são atacadas no espaço público ou intrafamiliar. Em síntese, são duas bandeiras eleitorais que atingem diretamente as políticas de educação para a igualdade, com impacto no direito à vida sem violência e discriminação, estratégia reconhecida pelo Estado brasileiro como importante para a prevenção da violência sexista, na forma doméstica, sexual, física, psicológica e econômica, tal qual comunica o artigo 8◦ da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que também prevê medidas integradas de prevenção.
Enquanto as mulheres denunciavam o sexismo eleitoreiro, justificativa da movimentação #EleNão, outras manifestações defensoras do candidato vinham no sentido de que “não importa machismo, homofobia, racismo, e sim as propostas para saúde, educação, segurança” ou ainda “eu não estou buscando um marido para pensar em machismo e sim um presidente”. Diante de tais declarações, ainda é necessário afirmar a relação entre os direitos das mulheres e o campo da política pública de interesse de todas – saúde, educação, trabalho, segurança pública.
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O último sábado 29 ficou na memória como uma discussão sobre a desconfiança com a política de violência oferecida às mulheres em formato de programa de campanha presidencial. Nos dias subsequentes, as mulheres começaram a sentir a expansão da negação da sua ação política e o uso de suas imagens de forma depreciativa com o intuito de minar o ativismo político das eleitoras. São declarações que desmerecem a ação das mulheres nas ruas, com argumentos que buscam alimentar estigmas associados a higiene e bom comportamento. São as mulheres que também ocupam fotos de mobilização erótica a favor do candidato do PSL, circulam em imagens sensuais com o número do candidato enquanto outras imagens de mulheres na ação política circulam para o deboche ou o uso indevido de suas imagens associadas a pornografia, ao desrespeito aos valores da família e a “ataques” à liberdade de religião e credo. São as mulheres como armas nas eleições e nunca como eleitoras.
Às vésperas do pleito eleitoral, a coroação da violência política é o escracho contra Marielle Franco, vereadora, mulher negra, lésbica, favelada e defensora dos direitos humanos, por meio da depredação da placa que simboliza o respeito da cidade do Rio de Janeiro com sua trajetória, a solidariedade de seus eleitores ou não eleitores com a dor de sua execução, e ainda a afirmação política de uma mulher negra eleita.
O episódio impulsiona outro grito: as mulheres não serão silenciadas! Marielle, Presente!
Ingrid Leão é doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e autora do livro “Execuções Sumárias” (Letramento, 2018). Integra o Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil).
Publicado originalmente em 04/10/2018, em Coluna CLADEM, Justificando.